Na revista Dois Pontos de outubro, falámos às crianças sobre o medo do escuro e sugerimos algumas técnicas que facilitam a hora de ir para a cama, para quem receia monstros debaixo da cama.
No texto abaixo, a psicóloga Inês Martins fala do modo como os adultos experienciam o medo e como podem ajudar as crianças a compreendê-lo e a viver com ele.

 

Nós, os adultos, somos os grandes

Nós – os adultos – somos grandes. Sorrimos enternecidos perante os medos das crianças. Nós – os grandes – não temos medo do lobo mau. Porquê? Porque sabemos que não existe! Com a nossa certeza oferecemos segurança. Com a nossa coragem, também. Espreitamos debaixo da cama, abrimos roupeiros, afastamos cortinados e dizemos: “Vês? Não está nada aqui! Podes dormir tranquilo.”

 

Nós, os grandes, temos medo!

Então, umas horas depois, chega o momento dos grandes irem para a cama. Deitamo-nos no escuro com a companhia dos monstros da nossa imaginação: “Amanhã vou fazer um exame médico, será que tenho alguma coisa grave?”; “Na quinta-feira vou apresentar ao cliente o novo projeto da empresa, só espero não fazer má figura!”; “Será que a conversa com a minha amiga vai correr bem? Espero que não se irrite com o que eu tenho a dizer…”; “Para a semana é a reunião de pais na escola do meu filho, ele anda tão agitado, de certeza que me vão dizer que se anda a portar mal.” Estamos deitados no escuro há cinco minutos e já temos toda uma alcateia no nosso encalço!

As crianças têm medo que o lobo mau esteja escondido debaixo da cama. Os adultos têm medo de esbarrar com uma doença grave ao virar da esquina, têm medo de ser assaltados pelo insucesso ou afastados pela rejeição. Têm medo da reprovação e do julgamento dos outros, têm medo do conflito. Nós, os adultos, temos medo de muitas coisas.

No escuro, não conseguimos ver, tal como não conseguimos ver o futuro, ele ainda não aconteceu! Então, imaginamos. E na nossa imaginação reside um superpoder. Não sabemos usar este superpoder e, por isso, ele usa-nos a nós. A manifestação mais comum do uso inconsciente e descontrolado da imaginação é a ansiedade. A ansiedade é a emoção que resulta da imaginação do perigo.

 

O campo de possibilidades

Criamos tantas histórias, na sua maioria com enredos que não nos são nada favoráveis. Pode correr mal! Sim, correr mal é uma possibilidade. Correr bem também é uma possibilidade.

No artigo da revista Dois Pontos, dissemos às crianças que, na maioria das vezes, imaginamos coisas assustadoras e explicámos porquê: parte da função da mente é garantir a nossa sobrevivência e preparar-nos para o pior. Antecipa todos os cenários possíveis e também as possíveis vias de ação e escapatórias.

Em prol da sobrevivência, precisamos de nos sentir em controlo. Mas nunca estamos totalmente em controlo. A vida é incerta, misteriosa e inexplicável. Podemos raciocinar, prever, precaver, ruminar sobre os assuntos, planear com minúcia – a vida continuará sempre a ser um mistério.

 

Por outro lado, imaginar cenários que nos fazem sentir mal é apenas um hábito de pensamento. Somos, como se costuma dizer, criaturas de hábitos. O problema é que temos muito pouca consciência da qualidade dos nossos pensamentos. Ninguém nos ensinou a escutar os nossos pensamentos.

Existe outro problema: normalmente, atribuímos a causas exteriores a responsabilidade por nos sentirmos desta ou daquela forma. Se assumirmos que a forma como nos sentimos é função do modo como pensamos, recuperamos o nosso poder. Não o poder de controlar aquilo que nos acontece, o que não é possível, mas o poder de escolher como queremos reagir àquilo que nos acontece. Se aprendermos a escutar os nossos pensamentos, podemos escolher que tipo de pensamentos queremos alimentar relativamente a uma dada situação. A forma como nos sentimos é uma pista poderosa relativamente à qualidade dos pensamentos que estamos a ter.

 

Se a vida é misteriosa e incerta, se não podemos controlar tudo o que nos acontece e se o nosso poder reside na capacidade de escolher o tipo de pensamentos que alimentamos, o nosso recurso mais valioso é aprender a fortalecer a mente. Ora, isto quer dizer exactamente o quê?

Quer dizer aprender a construir a nossa teia de previsões, crenças, hipóteses sobre a realidade e interpretações da realidade de uma forma que nos faça sentir bem connosco. Isso é amor-próprio, isso é autoestima. Falar connosco de uma forma que nos faça “sentir bem” não implica desresponsabilização. Pelo contrário, podemos assumir a nossa responsabilidade sem sentirmos culpa, sem nos castigarmos. Podemos dizer para nós mesmos: “Não estive nada bem aqui, não agi bem e não quero voltar a repeti-lo. Lição aprendida, para a próxima faço melhor.” O que é muito diferente de dizer: “És sempre a mesma coisa, fazes tudo mal, não acertas uma, a culpa é toda tua!”

Podemos dizer a nós mesmos: “Não sei como é que a minha amiga vai reagir ao que eu tenho a dizer, mas se disser o que penso de forma honesta e tranquila, dando-lhe espaço para dizer o que ela própria pensa e sente, tudo irá correr bem. Mesmo que a conversa seja difícil, tudo se irá resolver no final.”

É isto que podemos ensinar às crianças. Podemos dizer-lhes que na vida vão acontecer coisas maravilhosas, e coisas que vão causar sofrimento. Algumas coisas vão aparecer de surpresa, não vamos estar à espera. Vamos errar, vamos magoar sem querer, vamos falhar, vamos perder coisas que são importantes para nós. Mas dizemos-lhes também que elas têm dentro delas todos os recursos necessários para ultrapassar os momentos de desafio.

 

As crianças e a origem dos medos

Muitas vezes, quando as crianças passam por um período em que têm mais medos, o que está na base é um sentimento de insegurança. Como não conseguem verbalizar o que é, essa insegurança acaba por se manifestar em medos ou pesadelos. Nestes casos, o adulto pode usar o “lobo mau” para ajudar a criança a confrontar os seus medos e usar a imaginação a seu favor. Nem sempre é necessário perceber a causa da insegurança, por vezes basta pôr as crianças em contacto com os seus próprios recursos, forças e talentos para ultrapassar desafios ou lidar com a incerteza.

 

Voltamos ao exemplo do lobo mau. Nem sempre basta espreitar debaixo da cama e dizer: “Não está nada aqui! Podes dormir tranquila.” A criança poderá responder: “Mas ele pode aparecer quando tu te fores embora!” Pois claro que pode, na mente da criança, pode! Bem, e se isso acontecer?

Joguemos ao jogo das possibilidades com a criança.

– Por acaso já pensaste que o lobo mau pode ter medo de ti?

– Medo de mim? Mas eu sou pequenino.

– És pequenino em altura, mas és grande em muitas outras coisas.

E estas muitas outras coisas são todas as armas que a criança tem para derrotar o lobo mau. Ou, ao invés de derrotar, cativar!

– Será que ele é assim tão mau? Já tentaste conhecê-lo? Sabes quantos anos tem? Se tem pai e mãe? Se se sente triste e sozinho? Será que ele quer fazer amigos e não sabe como? Tu és ótimo a fazer amigos, porque é que não tentas ensiná-lo?

Podemos ajudar a criança a criar histórias que a façam sentir-se bem e capaz, à altura do desafio, mesmo que o cenário comece por ser assustador.

 

 Recursos para pôr a criança em contacto com as suas forças e talentos:

A Ciência do Caráterhttps://vimeo.com/90792640 (com legendas em português)

Animação: Como o mindfulness nos fortalece: https://www.youtube.com/watch?v=w6T02g5hnT4

Animação: Porque é o mindfulness um superpoder? https://www.youtube.com/watch?v=vzKryaN44ss

Inês Martins é psicóloga clínica e desenvolve a secção Emoções na Revista Dois Pontos.