No primeiro número da revista Dois Pontos falámos às crianças do tema da PARTILHA. Quando sentimos vontade de partilhar as nossas coisas e as nossas brincadeiras, abrimo-nos também para a relação e para a cooperação. Contudo, nem sempre apetece partilhar o que é nosso, inclusive o nosso espaço e o nosso tempo. Por vezes, sentimos necessidade de proteger ou de acarinhar aquilo que nos pertence, e essa vontade deve ser reconhecida e respeitada. Dar e receber é uma dinâmica que existe não só entre o Eu e o Outro, mas também dentro do próprio Eu.

O papel do adulto

Falámos também às crianças sobre o que fazer quando preferimos não partilhar, e sugerimos formas de comunicar aos outros as nossas razões e motivações. O adulto é um recurso valioso para a criança quando a ajuda a identificar e a contextualizar as emoções, pensamentos, medos e desejos que estão por trás do “não querer partilhar”. Uma vez identificada e aceite, a nossa necessidade pode então ser eficazmente comunicada. 

É também importante que o adulto ajude a criança a avaliar as consequências das suas ações e decisões – por exemplo: se, motivada por uma qualquer necessidade, a criança escolher continuamente não partilhar, poderá eventualmente ver as outras crianças afastarem-se dela, excluindo-a das brincadeiras.

Criar boas memórias de partilha

Pode dar-se o caso de a criança manifestar muitas dificuldades com a partilha.

Um dos motivos que está na base destas dificuldades é a criança não ter tido experiências gratificantes de partilha. Talvez só tenha tido “más” experiências, em que lhe estragaram os brinquedos ou lhe roubaram espaço na brincadeira.

Quando partilhar está associado a algo que causa desprazer, a criança precisa de ajuda para redefinir esta experiência. Isto é, a criança precisa de sentir que “é bom” partilhar. Não basta que lho digam, ela precisa de o experienciar.

O adulto pode pedir para participar nas suas brincadeiras, ou convidar a criança para brincar. Algo tão simples como jogar à bola, passando-a de uma pessoa para outra, pode revelar-se uma partilha extremamente gratificante. O importante é que seja o adulto a ir ao ritmo da criança, criando harmonia na interação. Por exemplo, se estiverem a jogar à bola, o adulto deve ter atenção para não passar com demasiada força ou velocidade, evitando que a criança fique frustrada e desista rapidamente.

Jogos de cooperação, em que sejam necessárias pelo menos duas pessoas para atingir um objetivo, são também boas opções. O Jogo da Carta da Terra é um ótimo exemplo.

Jogos de cartas são também uma boa opção, porque podem ser jogadas a dois, em grupo, ou a pares. Quando as dificuldades em partilhar e se relacionar são mais marcadas, o ideal é começar por jogos a dois, num ambiente mais controlado, e passar gradualmente para jogos em grupo e a pares.

A mímica é também excelente para treinar a cooperação! É melhor começar por mímicas bem simples, para a criança não se sentir frustrada quando não é capaz de “entender o outro” ou de “comunicar eficazmente”, acabando por desistir da brincadeira.

Uma vez que experiências gratificantes de partilha aconteçam com alguma consistência, acabarão por ser interiorizadas e transportadas para outros contextos e relações, criando na criança a expetativa de que partilhar pode ser bom. Gradualmente ela abrir-se-á cada vez mais.

Aceitar o imprevisível

Para a criança partilhar, quer seja um objeto, uma brincadeira ou mesmo um amigo, é necessário abdicar de um certo nível de controlo. Isto pode ser assustador, pois não conseguimos prever, com absoluta certeza, o que poderá acontecer – o objeto pode estragar-se, a brincadeira pode seguir um rumo que não é do meu agrado, e o meu amigo pode decidir que é mais divertido passar tempo com outra pessoa.

Existe sempre um certo grau de incerteza e de imprevisibilidade, que escapa ao nosso controlo, e esta condição torna-se mais evidente quando deixamos que outra pessoa entre no nosso espaço e partilhe daquilo que nos é valioso.

Há ainda casos em que não nos é dado a escolher. O nascimento de um irmãozinho é um exemplo clássico e, ao mesmo tempo, uma oportunidade perfeita para a criança aprender a partilhar. Para ajudar a criança nesta aprendizagem, é importante que o adulto saiba reconhecer o medo que se oculta por trás de uma birra ou de um ato mais “egoísta”, desmascarando-o. Ajuda fazer perguntas ou dizer algo como: “Parece-me que estás com medo ou com ciúmes, sabes que eu gosto muito de ti, não sabes?”.

O adulto pode sempre explorar com a criança a temática do controlo e da incerteza, lendo com ela livros sobre o assunto, ou partilhando histórias da sua própria infância

É essencial procurarmos transmitir à criança a ideia de que quando nos fechamos ao mundo, com medo do que possa acontecer, privamo-nos também das coisas maravilhosas que ele tem para nos oferecer.

Inês Martins é psicóloga clínica e desenvolve a secção Emoções na Revista Dois Pontos.

O Jogo da Carta da Terra 

Neste jogo, não há vencedores e vencidos: ou todos perdem, ou todos ganham!

O jogo é inspirado nos princípios da Carta da Terra, para uma sociedade mais sustentável e pacífica. Após a realização de uma tarefa comum, sorteada no início do jogo, todos se encontram e atravessam a meta juntos. Os jogadores progridem lançando um dado e retirando cartas que podem suscitar debates e partilha de saberes. Existem também reservas de energia (sementes) individuais e coletivas. Se as reservas se esgotarem, todos perdem. Existem, contudo, mecanismos de negociação, troca e empréstimo. O final do jogo é marcado por uma celebração artística conjunta.