Na Dois Pontos de janeiro falámos às crianças sobre o que é preciso para conseguirem materializar as suas ideias e trazerem transformação, inovação e progresso ao mundo. Quando contribuímos para um bem comum, ou quando conseguimos alcançar um determinado objetivo a que nos propusemos, sentimos bem-estar e realização pessoal. Todos temos a necessidade de nos sentir realizados, colocando ao serviço dos outros e de nós próprios as nossas capacidades e talentos.

 

Falámos também dos desafios que podemos encontrar durante a materialização do processo criativo e qual a mentalidade que nos conduz ao sucesso.

 

O ponto de partida: a curiosidade, a criatividade e a expressão individual

 

Estamos habituados a pensar na criatividade como a criação e exploração de novas ideias – o chamado pensamento fora da caixa, para lá daquilo que nos é conhecido. Mas para podermos dar corpo às nossas ideias necessitamos também de capacidade de foco, estrutura, planeamento e orientação para o concreto. Precisamos de nos predispor a partilhar e a abrirmo-nos para o mundo. Uma grande ideia fechada numa gaveta é uma ideia que nunca chegou a nascer.

Criatividade combina flexibilidade e rigor, pensamento divergente e convergente, abertura e afunilamento. É, na realidade, a perfeita combinação dos dois hemisférios cerebrais em ação. O hemisfério direito imagina, intui, sente, explora, combina linguagens sensoriais, imagéticas, simbólicas e emocionais, extraindo dessa combinação um sentido. O hemisfério esquerdo raciocina, analisa, planeia, categoriza e organiza para concretizar essa ideia no mundo.

 

 A nossa curiosidade inata para explorar o desconhecido encontra na criatividade uma forma emocionalmente segura de expressão individual. Albert Einstein disse: “Creativity is intelligence having fun.” Este exercício divertido da inteligência está extremamente presente nas crianças. A sua apropriação do mundo faz-se brincando, experimentando, arriscando possibilidades, combinando conhecimentos numa ordenação fantástica, por vezes sem nexo, muitas vezes “fora” da realidade. Este exercício da inteligência é extremamente valioso no decurso do crescimento da criança, quando combinado com uma crescente adequação à realidade e aplicado à resolução de problemas no mundo concreto.

 

Da teoria à prática – desenvolvendo uma mentalidade de sucesso         

 

            Nem sempre é fácil passar da teoria à prática. Tirar a ideia do papel (ou do nosso mundo interior) e pô-la cá fora exige que nos deparemos com a frustração de nem sempre as coisas correrem como tínhamos imaginado. Por vezes a frustração e os obstáculos são tantos que temos vontade de desistir. Por vezes os outros não acreditam na nossa ideia, ou não acreditam na nossa capacidade de a materializar, ou acham ainda que é uma ideia demasiado ambiciosa. A criança pode ser preparada para lidar com estes desafios.

Uma das primeiras coisas a fazer é desconstruir a ideia de sucesso. Sucesso não é fazer bem à primeira.Sucesso é persistir, mantendo o entusiasmo e o foco, renovando forças cada vez que nos deparamos com um obstáculo. Sucesso é incluir a frustração, é ter momentos de dúvida e, ainda assim, continuar. Quando persistimos e continuamos, fazemo-lo com uma perspetiva ampliada pela experiência de um erro ou de um falhanço.

As crenças vigentes constituem muitas vezes uma barreira, não só à criatividade, como à autoconfiança e à resiliência. Vivemos numa cultura orientada para resultados, num ritmo extremamente acelerado. Saltamos, desde crianças, de objetivo em objetivo, de realização em realização, numa cultura competitiva em que nos é passada a mensagem de que não há que chegue para todos. Então, na tentativa de proteger as nossas crianças da falta e da necessidade, dizemos-lhe com as palavras das nossas atitudes e medos que “tens de mostrar ao mundo que és bom o suficiente”, e ficamos ansiosos quando elas não acertam à primeira, ou quando não correspondem às expetativas do meio escolar ou social. Somos uma sociedade com medo de falhar e que, por isso, não gosta de arriscar. Arriscar e falhar não é visto como sinal de coragem e inteligência, é sinal de incompetência. Por isso inibimos a nossa expressão, mesmo que por dentro estejamos a fervilhar.

 

            O sucesso é feito de componentes mentais, emocionais e comportamentais. Um dos primeiros passos na passagem da teoria à prática é entender a materialização das ideias como um processo e não como um produto. Usando o exemplo publicado na Dois Pontos, a materialização da ponte de legos do Martim é o processo de construção da ponte, e não a ponte em si. Outro dos pontos importantes é a perceção de autoeficácia e a autoestima. A autoestima, o valor que atribuímos a nós mesmos, não pode ser algo dependente de resultados. Nem pode ser algo dependente do exterior, da sua validação ou não da nossa pessoa e comportamentos. A verdadeira autoestima é inabalável. É a perceção de um valor intrínseco, independente do sucesso ou insucesso na concretização de uma dada tarefa. Para desenvolver este tipo de autoestima é necessário termos predisposição para errar e assumirmos a nossa natureza imperfeita, que forçosamente inclui erro e escuridão.

Quando nos permitimos aprender com o erro, ele não mina a nossa autoestima; fortifica-a com a resiliência e a determinação para atingirmos a nossa visão, superando obstáculos, reposicionando-nos, mudando de rota, por vezes encontrando um caminho alternativo para chegar ao mesmo lugar previsto. Esta autoestima é também fortalecida pela coragem de assumirmos as nossas ideias ao partilhá-las com os outros, procurando mobilizá-los para um dado objetivo a que atribuímos valor.

Para ser bem-sucedida, é essencial que a criança, a par das competências e conhecimentos académicos, desenvolva um conjunto de competências mentais e emocionais que a levarão a conseguir os seus objetivos, ultrapassando e crescendo com todos os obstáculos que a vida coloca no caminho. Estas competências não podem ser plenamente desenvolvidas se a criança não for confrontada com a sua incapacidade momentânea para resolver uma dificuldade, nem com o sentimento de frustração que daí resulta. Só no confronto com a frustração e o obstáculo pode a resiliência ser construída. No caminho é construída uma teia de memórias valiosas de experiências que a criança ultrapassou. Os obstáculos são importantes, os obstáculos são essenciais.

 

O que podem os adultos fazer?

 

Validar as ideias das crianças, independentemente da sua viabilidade. O importante é que a criança tenha oportunidade de testar no concreto, sem assunções prévias de (in)sucesso ou (in)capacidade. A criança está na fase de ir testando ideias, percebendo a sua adequação ou não ao mundo real. Para que isso aconteça precisa de oportunidades para fazer esta transposição da fantasia para a materialização. Se a ideia não funcionar em termos da sua concretização, que seja através da experiência, não de uma atitude derrotista à partida.

Que o adulto possa acompanhar a criança neste confronto com a realidade, ajudando-a a discernir o que é necessário considerar em cada etapa do seu projeto, refletindo com ela sobre o que funcionou e o que não funcionou, explorando possíveis vias alternativas e ajudando no reconhecimento da necessidade de pedir ajuda ou de ter mais pessoas envolvidas.

É importante que neste acompanhamento se fale não só de comportamentos, resultados e ideias, mas também acerca das emoções envolvidas e da informação que as emoções nos dão. Por exemplo, se a criança se está a sentir ansiosa ou assoberbada pela quantidade de coisas a fazer na execução do seu projeto, podemos dizer à criança que um grande projeto é feito de pequenos passos, e ajudá-la a dar um pequeno passo de cada vez.

Esta presença e acompanhamento ajudarão o futuro jovem e adulto autodeterminado a exercer as competências que o levarão à materialização das suas ideias e a não se deixar abalar quando as coisas não correm bem à primeira.

 

Para ajudar a criança a desenvolver a sua perceção de autoeficácia e autoconfiança podemos usar o método das aproximações sucessivas. Por exemplo, a criança tem vergonha de ir sozinha comprar um gelado. Num primeiro momento, o pai vai com ela e faz o pedido ao vendedor, dizendo à criança: “Aponta lá com o dedo ao senhor o gelado que tu queres.” Num segundo momento, o pai acompanha a criança mas encoraja a interação da criança com o vendedor: “Este menino aqui quer comprar um gelado”, deixando à criança a continuidade da interação. Se a criança for muito tímida na expressão oral, podem começar por utilizar outras formas de comunicação, como os gestos ou o sorriso, num movimento gradual de aproximação ao contacto verbal. Numa fase final, o pai deixa a criança ir sozinha, recordando as experiências prévias: “Lembras-te como fizemos da última vez? Agora já conheces o senhor e ele também te conhece a ti! Tu consegues ir sem mim.”

Há casos em que as crianças são mais resistentes. Quando assim é, tem de se procurar um equilíbrio entre fomentar na criança o seu sentido de responsabilidade e a necessidade de um maior apoio por parte do adulto. É muito importante que a criança perceba que, para conseguir o que quer, tem de se predispor a agir nesse sentido (se não tomar a iniciativa de ir comprar o gelado, não pode satisfazer o seu desejo de o comer). Por outro lado, há crianças mais inibidas do que outras no contacto social, e que precisam de mais tempo e assistência.

 

A própria personalidade dos pais e figuras de referência tem o seu papel na maneira como as crianças se comportam. Há pessoas mais criativas, outras que estão mais à vontade na exposição e comunicação das suas ideias, há pessoas com uma mentalidade mais empreendedora e outras que se deixam abalar mais facilmente com os obstáculos. Mas, para lá da modelagem, estas competências são adquiridas através do treino e com o acompanhamento e reforço dos pais e educadores, mesmo que a criança não tenha essas características pessoais, ou que ainda não tenha tido espaço para as desenvolver.

 

Inês Martins é psicóloga clínica e desenvolve a secção Emoções na Revista Dois Pontos.